A Liberdade Religiosa
A Constituição Federal de 1988
assegura, entre os direitos arrolados em suas cláusulas pétreas, total proteção
à liberdade religiosa garantindo a inviolabilidade a convicção humana,
inclusive de seu credo religioso. Vejamos o teor dos incisos VI e VIII, do seu artigo 5°.
LEIA TAMBÉM:
Art. 5° [...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
[...]
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa...
José Afonso da Silva, em
sua notável obra Curso de Direito Constitucional Positivo, explicando esse
dispositivo constitucional, ensina que a liberdade religiosa
compreende três formas de expressão,
ou seja, contempla verdadeiramente três liberdades:
a) a liberdade de crença;
b) a liberdade de culto;
c) a liberdade de organização religiosa.
A liberdade de crença diz respeito à liberdade de escolha da religião,
podendo o cidadão, em seu livre arbítrio, mudar de religião, ser ateu ou, se
for assim sua escolha, exprimir o agnosticismo. Por essa disposição
constitucional, ninguém tem capacidade jurídica, nem mesmo o Estado, de
embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença,
observado, todavia, o respeito a ética e aos bons costumes positivados nas
regras jurídicas comportamentais de uma sociedade.
A liberdade de culto compreende
o direito de exteriorização da doutrina
professada, a prática de ritos, cerimónias, fidelidade às tradições na forma
indicada pela religião escolhida, o pleno exercício da liturgia do culto e no
culto, etc., sobretudo porque a religião não se completa apenas no sentimento
do sagrado, ou na silenciosa adoração, mas ao contrário, caracteriza-se na
plena adoração a Deus, que implica execução de todo o cerimonial religioso, ou
seja, no atendimento a todo comportamento litúrgico.
Pontes de Miranda explica a liberdade de culto da forma seguinte:
"compreende-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou
em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso".
A liberdade de organização religiosa diz respeito à possibilidade de estabelecimento
e organização das igrejas e suas relações com o Estado.
Ainda é Pontes de Miranda quem
esclarece o sentido das várias prescrições nucleares nos verbos do artigo 19,
I, da CF/88. Dispõe o citado artigo:
Art. 19.
E vedado à União,
aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter
com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada,
na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Para Pontes de Miranda, a terminologia constitucional
"estabelecer cultos religiosos" deve ser compreendida em sentido
amplo: "criar religiões ou seitas, ou fazer
igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa, ou propaganda".
"Subvencionar cultos religiosos", considera Pontes,
"está no sentido de
concorrer, com dinheiro ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça
a atividade religiosa".
Por fim, embaraçar
o exercício dos cultos religiosos, significa "vedar, ou dificultar,
limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou
manifestações de pensamento religioso".
Também não se admitem
relações de dependência ou de aliança do Estado, com qualquer culto, igreja ou seus
representantes.
As Igrejas como Organizações Religiosas
As igrejas, que no Código Civil de 1916 eram consideradas "sociedades pias e
religiosas" e submetidas às mesmas regras legais das sociedades (art. 20
a 23), passam, com o advento do Novo Código Civil, (e, após o advento da Lei 10.825, de 227 12/2003), a
ser consideradas "organizações religiosas", possuindo, com base nessa
lei, poder de auto regulação, na medida em que assegurada a liberdade na sua
criação, organização, estruturação interna e funcionamento.
As Igrejas e o Novo Código Civil
Classificação Das
Pessoas Jurídicas De Direito Privado
Na leitura do Código
Civil de 1916, em especial o seu artigo 16, identificamos a classificação das
pessoas jurídicas de direito privado, em três categorias, nos seguintes termos:
Art. 16. São pessoas jurídicas de direito privado:
I - as sociedades civis,
religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as
fundações;
II - as
sociedades mercantis;
III - os
partidos políticos.
Ao analisarmos o Novo Código Civil de 2002, que entrou em vigor no dia 11/01/2003, não
mais prevalecem as categorias anteriores. Com base na redação do artigo 44 do
novo Código, a classificação passa a ser a seguinte:
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I — as associações;
II — as sociedades;
III — as fundações.
Embora precoce, o Novo Código Civil já sofreu alteração em sua redação original, imposta
pela edição da Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003, onde as instituições
religiosas, que sob a égide do Código Civil de 1916 eram denominadas
"sociedades pias e religiosas", passaram a ser, por um pequeno lapso
temporal, juridicamente consideradas "associações" e a partir de 22
de dezembro de 2003, passam a ser organizações religiosas.
O artigo 44 do Novo Código Civil, com a alteração imposta
pela Lei 10.825, de 22/12/2003, adiciona ao artigo 44, dois parágrafos, sendo
relevante que se reproduza a nova redação do artigo em sua integridade.
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I - as associações;
II - as
sociedades;
III — as fundações;
IV — as organizações religiosas;
V - os partidos políticos.
§ 1° São livres a criação, a organização, a
estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo
vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registros dos atos constitutivos e necessários ao funcionamento.
§ 2° As disposições
concernentes às associações aplicam-se subsidiariamente às sociedades que são
objeto do Livro II da Parte Especial deste Código.
§
3° Os partidos políticos serão organizados e funcionarão conforme o disposto em
lei específica.
O legislador de 1916 tratava
sob as mesmas regras legais as sociedades e as associações (arts. 20 a 23). Esse
tratamento legislativo idêntico para instituições com finalidades tão diversas,
sem dúvida revelava-se um flagrante desacerto técnico, cuja correção, a
doutrina forjada na sapiência dos nossos causídicos e tribunais, no decorrer
dos anos, incumbiu-se de promover.
Acompanhando essa construção
doutrinária, o Novo Código Civil fez essa distinção entre tais instituições, o
que gerou elogios de muitos, mas ressalvas e críticas contundentes, de outros
tantos.
Com maestria registrou o
ilustre Desembargador José António Macedo Malta, do Tribunal de justiça de
Pernambuco, no tocante à diferenciação entre as sociedades e as associações,
uma das mais importantes inovações da nova Parte Geral do Código Civil.
"O código
assim merece encômios e elogios maiores quando distingue de forma definitiva as
sociedades das associações, reservando às sociedades o termo daquelas restritas
exclusivamente à natureza empresarial, comercial e industrial. No campo das
meras associações, estão aquelas empresas de natureza civil, piedosa,
científica, cultural e esportiva. Não se trata de uma questão meramente de
denominação; não é nenhuma rotulação ou qualquer coisa dessa ordem. E um júris,
com todos os seus conceitos e definições, e com embasamento em vocação
doutrinária para distinguir as sociedades das associações".
O elemento diferenciador das
sociedades para as associações reside na motivação lucrativa que dá substância
a sintonia da ação conjugada dos sócios daquelas, o que não se identifica
nestas. As associações, por força do disposto no artigo 53 do Novo Código
Civil, não têm como objetivo a partição de lucros, são sociedades de fins não
econômicos, buscam a realização de propósitos outros de natureza cultural,
social, pias, religiosas, recreativas, filantrópicas.
A entidade religiosa, embora
uma pessoa jurídica com características associativas, sem fins lucrativos, com
patrimônio sujeito a uma administração participativa dos seus membros, tem,
todavia, qualidades distintivas fundamentais, que não permite a aplicação, em
sua plenitude, das regras associativas, aplicáveis às associações de uma forma
geral.
A atividade religiosa possui
um governo próprio, pensamentos e ética especialíssimas, sobretudo no que tange
aos seus aspectos doutrinários, litúrgicos, comportamentais, aplicáveis aos
seus fiéis.
Algumas práticas, embora
aceitáveis na sociedade civil, são rejeitadas ou reprovadas no comportamento
religioso, e, em prevalecendo uma regra jurídica que despreze a validade da
norma religiosa, certamente estaríamos convivendo com algumas turbações na
administração da Igreja.
Ao determinar a nova Lei
10.825, de 2003, a liberdade da criação, organização, estruturação interna e o
funcionamento das organizações religiosas, permitiu-se a convivência harmônica
entre a igreja e o Estado laico.
Adicionalmente, retirou a
necessidade de adequações estatutárias até então urgentes em face da imposição
prevista no artigo 2.031 do Código Civil, que obrigava as entidades religiosas,
a reformarem os seus estatutos até 10 de janeiro de 2004.
Entendemos que embora não
mais se materialize a obrigatoriedade da adoção total das regras de caráter
societário das associações, vivemos um novo ambiente jurídico no qual se insere
a Igreja, e ao qual indiscutivelmente, terá de se adaptar, sob pena de, em
algumas circunstâncias inserir-se na prática de atos possivelmente ilegais.
A Lei 10.825, na verdade, em
nada alterou a essência das regras jurídicas consagradas pelo Novo Código
Civil. Se alguns entendem que esta nova lei não veio de alguma forma ampliar
qualquer liberdade, deve-se alertar que somente se trata da liberdade
juridicamente possível, ou seja, resume-se a fazer valer garantia
constitucional da liberdade religiosa, nada mais que isso.
Exemplificando, poderá a
igreja excluir determinado membro, desde que claramente evidenciada a prática
de ação contrária ao determinado pela ordem clerical, todavia, caso esta
circunstância não seja evidente, o membro excluído poderá fazer valer seus
direitos, se o ato de exclusão vier a violentar o seu direito personalíssimo, dentre
os constantes dos artigos 11 a 21 do Código Civil, os quais ressalta-se, são
intransmissíveis e irrenunciáveis, isto é, não pode o seu exercício sofrer
limitação voluntária.
Deve-se ter em mente que a
liberdade religiosa se subsume ao arcabouço jurídico, no que tange aos direitos
e liberdades individuais amparados pelas cláusulas pétreas da Constituição, bem
como a toda a legislação extravagante que destas matérias constitucionais
regulamentarem.
A Lei 10.825 não permite que
os administradores das igrejas se eximam, por exemplo, de fazer a prestação de
contas ao corpo de membros. Tal proceder implica abuso de direito e de poder,
reprovados pela lei. Nestas hipóteses, poderemos estar diante de situações
desconfortáveis cuja solução poderá chegar a discussões judiciais.
Deve-se entender que ao
Judiciário compete, no controle da legalidade, não se limitar à simples
verificação de adequação dos procedimentos aos estatutos, mas, sobretudo,
haverá de investigar o mérito da ação ou omissão praticada, com o objetivo da
avaliação, não da oportunidade e sequer da conveniência, mas, sobretudo,
essencialmente, quanto a aferir a concorrência ou não do desvio de finalidade.
O que promove o direito será
sempre a salvaguarda da continuidade da instituição ou a sua duração, que
juridicamente representa um bem social, cujo valor não pode ser prejudicado por
qualquer membro, ainda que administrador, que por seu comportamento, se tenha
contrário ou prejudicial aos fins da igreja.
Fonte: Administração e
Liderança – IBADEP/Reverberação: Subsídios EBD