A
análise do tema “batalha espiritual” no presente capítulo enfoca o conjunto de
crenças e práticas neopentecostais que alcançou espaço considerável em nosso
meio.
Trata-se da doutrina da maldição hereditária, da teoria dos espíritos
territoriais e da ideia de expulsar demônios dos próprios crentes em Jesus. São
inovações provenientes de várias fontes: erros de interpretação de textos
bíblicos, experiências pessoais e revelações de origem estranha. Trata-se de
distorção doutrinária que está muito em voga na mídia evangélica e nos últimos
anos vem recebendo aceitação de muitos líderes desavisados.
A REALIDADE DA BATALHA ESPIRITUAL
A
autêntica batalha espiritual tem fundamentos bíblicos: “todo o mundo está no
maligno” (1 Jo 5.19). Mas nem tudo o que se diz ser batalha espiritual tem
sustentação bíblica. Por isso a necessidade de entender como o assunto é
apresentado na Bíblia. Como veremos, há passagens que descrevem esse tipo de
batalha no Antigo e no Novo Testamento.
No
Antigo Testamento, o relato que trata da deliberação sobre a guerra contra Ramote-Gileade
registrado em 1 Reis 22.10-28, e a passagem paralela de 2 Crônicas 18.5-27
mostra uma cena dramática do embate entre o falso profeta Zedequias liderando
um grupo de 400 falsos profetas e o profeta de Deus, Micaías. Era uma batalha
espiritual, uma disputa do reino das trevas contra o reino da luz.
Os
três capítulos iniciais do livro Jó revelam outra batalha: o próprio Satanás
ousa desafiar Deus usando o patriarca Jó. Não que o diabo tenha poder para
medir forças com Deus; esse dualismo não existe na Bíblia entre Deus e Satanás.
Mas Deus permitiu a Satanás tirar tudo de Jó, desde os filhos até os bens
materiais e por fim até mesmo a saúde. Satanás está vivo e ativo no planeta
Terra, mas Deus tem testemunhas fiéis que limitam essa atuação satânica. Jó é
um exemplo clássico dessa realidade.
No
Novo Testamento, o exemplo mais conhecido é a tentação de Jesus no deserto
registrada nos evangelhos sinóticos (Mt 4.1-11; Mc 1.12, 13; Lc 4.1-13).
Situação dessa natureza aparece com certa frequência nos evangelhos (Mt 12.22;
17.19, 21). O apóstolo Pedro teve de enfrentar Simão, o mágico em Samaria (At
8.9-24), e da mesma forma o apóstolo Paulo enfrentou várias vezes essas hostes
malignas (At 13.8-11; 16.16-22; 19.11-19). Paulo fala sobre a existência de um
mundo espiritual da maldade sob o domínio do príncipe das trevas (Ef 2.2;
6.10-12).
Esses
exemplos são suficientes para apontar a existência da batalha espiritual nas
Escrituras Sagradas. Como contextualizamos o assunto, então? Trazendo a
realidade para nossos dias, a batalha espiritual consiste na oposição dos
cristãos às forças malignas pela pregação do evangelho, pela oração e pelo
poder da Palavra de Deus. Essa peleja vai continuar até a vinda de Jesus.
É
verdade que no trabalho da pregação do evangelho ocorrem muitos fenômenos inexplicáveis.
Reconhecemos que os demônios existem, são reais e se manifestam de várias
maneiras, principalmente nas pessoas possessas. Tais espíritos precisam ser
expulsos. É verdade que oração e jejum são indispensáveis e muito importantes
na vida do crente, principalmente quando nos encontramos numa situação como
essa. Nesse aspecto, a teologia da batalha espiritual está de acordo com as
Escrituras Sagradas. Os fatos estão registrados na Bíblia, e nenhum cristão ousa
negar essa realidade.
AS EXTRAVAGÂNCIAS DA SUPOSTA BATALHA
ESPIRITUAL
Existe
uma onda extravagante surgida na década de 1960 que tenta se passar por batalha
espiritual. Infelizmente essa inovação ainda não foi erradicada de nosso meio.
O que se vê nesse novo movimento é uma aberração doutrinária que tem levado
muitos à incredulidade e outros ao fascínio quase esotérico. São crenças e
práticas muito próximas do esoterismo e do ocultismo.
1. A doutrina da maldição
hereditária
Os
expositores dessa doutrina afirmam que seus ensinos têm apoio bíblico e pinçam
a Bíblia em busca de versículos aqui e acolá na tentativa de consubstanciar as
novidades apresentadas ao povo. A doutrina resume-se nisso: se alguém tem
problemas com adultério, pornografia, divórcio, alcoolismo ou tendência suicida,
é porque alguém de sua família, no passado, não importa se avós, bisavós,
tataravós, teve esse problema.
Segundo
essa doutrina, a pessoa afetada pela maldição hereditária deve, em primeiro
lugar, descobrir em que geração seus ancestrais deram lugar ao diabo. Uma vez
descoberta tal geração, pede-se perdão por ela, e, dessa forma, a maldição de
família será desfeita. Uma espécie de perdão por procuração, muito parecido com
o batismo pelos mortos praticado pelos mórmons.
Basta
uma leitura na Bíblia, ainda que superficial, para ver com clareza a
fragilidade dessa doutrina, a começar pela história de Caim e Abel. Ambos eram
filhos dos mesmos pais, receberam a mesma educação religiosa, entretanto um era
fiel, e o outro, ímpio (1 Jo 3.12). O que dizer de Jacó e Esaú, irmãos gêmeos,
educados no mesmo lar? Aquele recebeu a bênção porque este a trocou por um
prato de comida (Ml 1.2; Hb 12.16, 17).
Não
existe na Bíblia registro de profeta ou apóstolo praticando ou ensinando
orações ou atos litúrgicos para quebrar a maldição de Caim ou de Esaú.
A
Bíblia revela que nem sempre o filho assimila o pecado do pai. Há muitos
exemplos na história dos reis de Israel e de Judá registrados nos livros dos
Reis e das Crônicas. O rei Amom “fez o que era mal aos olhos do SENHOR” (2 Cr
33.22); no entanto, o rei Josias, seu filho: “[...] fez o que era reto aos
olhos do SENHOR e andou nos caminhos de Davi, seu pai, sem se desviar deles nem
para a direita nem para a esquerda” (2 Cr 34.2).
Os
principais expoentes dessa doutrina apresentam uma roupagem aparentemente bíblica.
Eles citam a Bíblia fora do contexto para adaptá-la aos seus ensinos. O uso do
segundo mandamento do Decálogo é um desses exemplos:
Não farás para ti imagem de
escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra,
nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás;
porque eu, o SENHOR, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais
nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço
misericórdia em milhares aos que me amam e guardam os meus mandamentos (Êx
20.4-6).
Os
promotores da doutrina da maldição hereditária se apegam à frase explicativa do
segundo mandamento: “que visito a maldade dos pais nos filhos até à terceira e
quarta geração daqueles que me aborrecem” (v. 5). A alegação é a seguinte: “A sua
Palavra declara que uma maldição pode ser transmitida de geração a geração (Êx
20.3-5)” (HICKEY, 1993, p. 21).
O
objetivo dessas palavras explicativas do segundo mandamento do Decálogo é
contrastar o castigo para “a terceira e a quarta geração” com o propósito de
Deus de abençoar a milhares de gerações, considerando que a “terceira e a
quarta geração” representam o número máximo de gerações que vivem juntas na
extensão de uma família. O contexto desse preceito é a idolatria, pois o
mandamento começa com as palavras: “Não farás para ti imagem de escultura,
[...] Não te encurvarás a elas nem as servirás”. Logo, as ameaças sobre as
gerações daqueles que aborrecem a Javé são para os descendentes que continuam envolvidos
na idolatria dos pais. Quando alguém se converte a Cristo, deixa de aborrecer a
Deus; logo, essa passagem bíblica não pode se aplicar aos crentes nascidos de
novo (Rm 5.8-10), pois eles se tornaram novas criaturas, “as coisas velhas já
passaram, e eis que tudo se fez novo” (2 Co 5.17).
Havia
em Israel um provérbio muito antigo: “Os pais comeram uvas verdes, e os dentes
dos filhos se embotaram?” (Ez 18.2). Essa máxima parece estar arraigada no
segundo mandamento.
Esse
dito popular refletia o ceticismo dos exilados na Babilônia, pois se
consideravam injustiçados, ou seja, estavam sendo condenados e punidos por
causa do pecado dos seus antepassados.
Era
uma crítica à justiça divina. “Uvas verdes” são os pecados, e os “dentes
embotados” são a consequência deles. Essa máxima aparece de forma literal em Lamentações:
“Nossos pais pecaram e já não existem; nós levamos as suas maldades” (5.7).
O
conceito de responsabilidade continuada pelos pecados ancestrais era herança do
segundo mandamento, uma vez que a continuidade das gerações humanas impede que
a pessoa se isole do grupo. Os pecados do povo foram acumulados geração após
geração, mas o castigo do cativeiro era responsabilidade daquela geração. O
profeta Jeremias exortou a casa real com todos os seus príncipes, os sacerdotes
e o povo ao arrependimento, e isso ele fez durante mais de quarenta anos. Sua
mensagem foi rejeitada: “E fez o que era mau aos olhos do SENHOR, seu Deus; nem
se humilhou perante o profeta Jeremias, que falava da parte do SENHOR” (2 Cr
36.12). Era uma rebelião generalizada contra Deus (2 Cr 36.15, 16). Os profetas
Jeremias e Ezequiel rejeitaram esse ditado do povo, mostrando que a
responsabilidade é pessoal. Jeremias anunciou que na Nova Aliança nunca mais dirão:
“Os pais comeram uvas verdes, mas foram os dentes dos filhos que se embotaram”
(Jr 31.19). Note que até em Jerusalém esse dito se propagava. Mas a palavra
profética em Ezequiel proíbe desde então esse provérbio, e não no futuro: “Vivo
eu, diz o Senhor Deus, que nunca mais direis esta parábola em Israel” (Ez
18.3). Todo o capítulo 18 de Ezequiel gira em torno da responsabilidade
individual de cada pessoa diante de Deus: “A alma que pecar, essa morrerá; o
filho não levará a maldade do pai, nem o pai levará a maldade do filho; a
justiça do justo ficará sobre ele, e a impiedade do ímpio cairá sobre ele” (Ez
18.20). Não há espaço no cristianismo para essa crença estranha da maldição de
família.
Não
há contradição alguma entre o segundo mandamento e Deuteronômio 24.16. Em Êxodo,
trata-se da administração da justiça divina, ao passo que, em Deuteronômio, o
propósito é instruir a sociedade israelita sobre os abusos de não condenar nem
punir inocentes por causa dos pecados dos pais culpados:
“Os
pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos, pelos pais; cada qual morrerá
pelo seu pecado” (Dt 24.16). Esse preceito é aplicado na vida prática
posteriormente (2 Rs 14.5, 6).
Outra
tentativa para dar roupagem bíblica a essas inovações é a interpretação errônea
da expressão “espíritos familiares”. O argumento é o seguinte: “Há uma nova
vida, uma nova natureza em você. Mas seus filhos podem herdar seu ponto fraco.
Sua geração foi purificada, mas eles têm de purificar-se também!
A
maldição precisa ser quebrada neles, ou eles herdarão sua fraqueza, que veio de
seu pai e, antes dele, de seu avô e seu bisavô” (HICKEY, 1993, p. 61). Em seguida,
aparecem duas citações bíblicas para fundamentar a sua declaração: “Não vos virareis
para os adivinhadores e encantadores; não os busqueis, contaminando-vos com
eles. Eu sou o SENHOR, vosso Deus...
Quando
uma alma se virar para os adivinhadores e encantadores, para se prostituir após
eles, eu porei a minha face contra aquela alma e a extirparei do meio do seu
povo” (Lv 19.31; 20.6).
O termo “adivinhadores” é
substituído por “espírito familiares”, pois a citação é da versão inglesa, a
King James Version. Uma vez apresentadas as referências bíblicas, vem a
definição de “espíritos familiares”: “São maus espíritos decaídos que se
tornaram familiares numa família” (HICKEY, 1993, p. 62).
O
termo hebraico usado nas passagens bíblicas citadas aqui para “espírito
familiares” é obh, ou obhoth, no
plural, que os dicionários e léxicos hebraicos traduzem por “médium, espírito, espírito
de mortos, necromante e mágico” (HARRIS e ARCHER, 1998, p. 24); “médium,
adivinho, necromante, feiticeiro, espírito dos mortos, fantasma” (VANGERMEREN,
vol. 1, 2011, p. 294); “espírito de morto, vaticinador” (HOLLADAY, 2010, p. 7).
O
homônimo de obh, palavra de mesma
grafia com significado diferente, é “odres” (Jó 32.19). Essa palavra é
traduzida apenas uma vez por “espírito familiar” na ARC (Is 8.19) e nenhuma vez
na ARA. Trata-se de um termo muito disputado, o que já sinaliza a fragilidade
em desenvolver uma doutrina baseada em passagens controversas.
É
o relato do encontro
de Saul com a médium de En-Dor (1 Sm 28.5-19) que lança
luz sobre o significado do termo. Os lexicógrafos mais respeitados e
mundialmente reconhecidos como Gesenius, Koehler Baumgartner, David J. A.
Clines, entre outros, seguem nessa mesma linha.
O
termo obh, seja no singular ou no
plural, obhoth, aparece 16 vezes no Antigo Testamento hebraico, assim traduzido
na ARC: “adivinhadores” (Lv 19.31; 20.6); “espírito adivinho” (Lv 20.27);
“espírito adivinhante” (Dt 18.11);
“adivinhos” (1 Sm 28.3, 9; 2 Rs 21.6; 23.24; 2 Cr 33.6; Is 19.3); “espírito de
feiticeira” (1 Sm 28.7, 8); “adivinhadora” (1 Cr 10.13); “espíritos familiares”
(Is 8.19) e “feiticeiro” (Is 29.4).
A expressão “espírito
familiar” aparece cinco vezes na TB para traduzir o hebraico
yddeoni, “espírito dos mortos, adivinhador”, que aparece 11 vezes no Antigo
Testamento, todas elas combinadas com o substantivo obh (2 Rs 21.6; 23.24; 2 Cr
33.6; Is 8.19; 19.3) A TB, então, combina os termos, traduzindo-os por
“espírito familiares e feiticeiros”.
A
Septuaginta traduz obh e obhoth 12 vezes por engastrímythos, “adivinho, adivinhador”, literalmente, “ventríloquo”, aquele que faz predições
desde o ventre usando a ventriloquia (Lv 19.31; 20.6, 27; Dt 18.11; 1 Sm 28.3,
7 [duas vezes], 8, 9 [duas vezes]; 1 Cr 10.13; 2 Cr 33.6; Is 8.19; 19.3). A
expressão “espírito familiar”, ou “espírito familiares”, é uma tradução pouco
usada e de origem desconhecida. Muitos dicionários e léxicos não usam a
expressão, e pouquíssimos fazem menção dela com ressalva, como “provavelmente
chamado ‘familiar’ porque era... como um servo...” (ORR, 1996, vol. II, p. 1094).
2. O mapeamento espiritual
Esse
novo movimento, cujos líderes chamam de batalha espiritual ou guerra
espiritual, acrescenta ainda no seu bojo a doutrina dos espíritos territoriais.
Seus expositores fundamentam essa crença em experiências humanas, nos relatos
de missionários, e não na Palavra de Deus. Peter Wagner, no capítulo 3 do livro
Espíritos Territoriais, demonstra isso. Em resumo, a doutrina consiste na crença
de que Satanás designou seus correligionários para cada país, região ou cidade.
O evangelho só pode prosperar nesses lugares quando alguém, cheio do Espírito
Santo, expulsar esse espírito maligno. Em decorrência, surgiu a necessidade de
uma geografia espiritual, daí o mapeamento espiritual. Os espíritos territoriais
são identificados por nomes que eles mesmos teriam revelado com suas
respectivas regiões que supostamente comandam.
Para
sustentar a ideia de que há uma organização territorial, é citada a passagem do
apóstolo Paulo: “o deus desse século cegou o entendimento dos incrédulos” (2 Co
4.4). Peter Wagner usa o mesmo método das seitas no sentido de tirar conclusões
em mera possibilidade. Ele julga ser possível considerar o termo “incrédulos”
como “territórios”, incluindo “nações, estados, cidades, grupos culturais,
tribos, estruturas sociais” (p. 72) e, sobre essa falsa premissa, constrói seu
pensamento doutrinário.
Ainda
de maneira sutil, o autor procura fundamentar sua ideia nas palavras: “príncipe
do reino da Pérsia” (Dn 10.13), “príncipe da Grécia” (v. 20), para justificar o
mapeamento espiritual. O capítulo 3 da citada obra apresenta até nomes desses
supostos espíritos territoriais, os quais teriam revelado a si mesmos como Tata
Pembele, Guarda dos Antepassados e Espírito de Viagens, entre outros. Narai seria
o espírito chefe na Tailândia. Isso evidencia que os defensores da crença dos espíritos
territoriais creem na mensagem demoníaca, e isso é muito perigoso, pois Satanás
é o pai da mentira (Jo 8.44).
Não
existe vínculo entre a doutrina do mapeamento espiritual e a passagem de Daniel
10.13, 20, pois o texto sagrado trata de guerra angelical, e não há indícios da
presença humana. O profeta está completamente alheio a essa batalha, pois seu
papel é outro. Os promotores da doutrina dos espíritos territoriais costumam, também,
citar a passagem do endemoninhado gadareno (Mc 5.10), quando o demônio, porta-voz
da legião, “rogava muito que os não enviasse para fora daquela província”. Isso
faz parecer, à primeira vista, que os promotores do tal ensino estão certos.
Mas
o texto deve ser interpretado à luz do contexto. A passagem paralela mostra que
tal pedido aconteceu porque Jesus havia mandado os tais espíritos para o abismo:
“E rogavam-lhe que não os mandasse para o abismo” (Lc 8.31), e por isso eles
pediram para ficar na região; não se trata, portanto, de espíritos
territoriais. Essas inovações são perturbadoras e destoam completamente do
pensamento do Novo Testamento.
Fonte:
SOARES,
Esequias/ SOARES, Daniele. Batalha Espiritual. O povo de Deus e a Guerra Contra
as Potestades do Mal. 1ª edição de 2018 - CPAD