Evidentemente, a Bíblia ensina uma escolha feita por Deus: a eleição divina. O Antigo Testamento diz que Deus escolheu Abraão (Ne 9.7), o povo de Israel (Dt 7.6; 14-2; At 13.17), Davi (1 Rs 11.34), Jerusalém (2 Rs 23.27) e o Servo (Is 42.1; 43.10).
No Novo Testamento, a escolha divina inclui anjos (1 Tm
5.21), Cristo (Mt 12.18; 1 Pe 2.4,6), um remanescente de Israel (Rm 11.5) e os crentes, isto é, os eleitos, quer individual
(Rm 16.13; 2 Jo 1.1,13) ou
coletivamente (Rm
8.33; 1 Pe 2.9). Sempre a iniciativa é de Deus.
Ele não escolheu Israel pela grandeza da nação (Dt 7.7). Jesus diz aos seus discípulos: "Não me
escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós" (Jo 15.16).73 Paulo deixa bem claro esse fato
em Romanos 9.6-24, ao declarar que Deus escolhera
apenas os descendentes de Isaque para serem seus filhos (vv. 7-8) e que, antes do nascimento, Ele escolheu Jacó, e
não o seu gêmeo, Esaú, "para que o propósito
de Deus, segundo a eleição, ficasse firme" (v. II).
Precisamos notar as ênfases de Paulo. Uma delas é que
ser filho de Deus depende da livre e soberana expressão de sua misericórdia, e
não de algo que sejamos ou façamos.
Paulo
enfatiza a misericórdia divina que inclui os gentios juntamente com os judeus
(Rm 9.24-26; 10.12). O calvinismo , entende que esse trecho bíblico afirma a doutrina
de uma escolha arbitrária de Deus, que não leva em conta a responsabilidade e
participação humanas. Essa, porém, não é a única possibilidade. Na mesma seção
bíblica (Rm 9-11), surgem evidências da participação
e responsabilidade humanas (cf.
9.30-33; 10.3-6,9-11,13,14,16; 11.20,22,23). Paulo afirma: "Deus, pois, compadece-se de quem quer e endurece a quem quer" (9.18). Diz ainda que Israel havia experimentado "o
endurecimento em parte"
(11.25), mas o contexto parece relacioná-lo à sua desobediência, obstinação e incredulidade (10.21; 11.20). Além disso, Paulo declara que a
razão por que "Deus encerrou a todos debaixo da desobediência" é
"para com todos usar de misericórdia" (11.32). Portanto, não somos forçados a uma única conclusão,
isto é, a eleição incondicional.
Qualquer estudo sobre a eleição deve sempre começar
por Jesus. E toda conclusão teológica que não fizer referência ao coração e aos
ensinos do Salvador, seja tida forçosamente por suspeita. Sua natureza reflete o Deus que elege, e em Jesus não achamos nenhum
particularismo. NEle, achamos o amor. Por isso, é relevante que em quatro
ocasiões Paulo vincule o amor à eleição ou à predestinação: "Sabendo,
amados irmãos, que a vossa eleição [gr. eklogên] é de Deus" (1 Ts
1.4).
"Como eleitos [gr. eklektoi] de Deus, santos e amados..".
(Cl 3.12) - nesse contexto, amados por Deus.
"Como também nos elegeu [gr. exelaxato] nele antes da fundação do mundo... e nos
predestinou para filhos de
adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito [gr. eudokia] de sua vontade" (Ef 1.4,5).
Embora a intenção divina não esteja ausente nesta
última palavra grega (eudokia), ela inclui também um sentido de calor que não fica
tão evidente em thelõ ou boulomai. A forma verbal aparece em Mateus 3.17, onde o Pai diz: "Este é o meu Filho amado, em
quem me comprazo [gr. eudokêsa]".
Finalmente, Paulo diz: "Mas devemos sempre dar
graças a Deus, por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido [gr. heilato] desde o princípio para a
salvação, em santificação do Espírito e fé da verdade" (2 Ts
2.13). O Deus que elege é o Deus que ama, e Ele ama o
mundo. Tornar-se-ia válido o conceito de um Deus que arbitrariamente escolhe
alguns e desconsidera os demais, deixando-os ir à perdição eterna, diante de um
Deus que ama o mundo?
Em Jesus vemos também a presciência. Ele sabia que morreria
numa cruz (Jo 12.32) e conhecia alguns pormenores de sua morte (Mc 10.33,34). Sabia que
Judas o trairia (Jo 13.18-27) e que Pedro o negaria (Mc 14-19-31). Mas certamente
não devemos atribuir causalidade à sua presciência. Depois de curado o coxo,
Pedro declarou que os judeus em Jerusalém haviam agido na ignorância ao
crucificar Jesus, mas que também a morte de Cristo cumprira o que Deus falara
através dos profetas (At 3.17,18).
Deus não os levou
a crucificar Jesus, a culpa ainda era deles (At
4.27,28).77 Portanto, quando a Bíblia liga nossa eleição à presciência (1 Pe 1.2) não devemos
ver nisso a causalidade. Deus não precisa predestinar para saber de antemão. A
declaração, em Romanos 8.29, de que os que Deus "dantes conheceu, também
os predestinou" não apoia semelhante ideia: a presciência seria um termo sem
significado.
Não
poderíamos considerar a presciência e a predestinação como
dois lados de uma mesma moeda?
Além disso, têm-se dito que o verbo
"conhecer de antemão" (gr. proginõskõ) sugere
algo mais que a mera
cognição mental. Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento
empregam a palavra "conhecer" para referir a intimidade do relacionamento
entre marido e mulher (Gn 4.1; Lc 1.34) e para conhecer aquilo que vai além de
meros fatos a respeito de uma pessoa. O Senhor, falando através de Amós, diz a Israel: "... a
vós somente conheci" (3.2). Paulo disse: "... para conhecê-lo
[Cristo]" (Fp 3.10). Ao dirigir-se aos "pais", João diz que
"já conhecestes
aquele que é desde o princípio" (1 Jo 2.13,14).
Estes exemplos por certo demonstram que "conhecer", na Bíblia, pode incluir amor e relacionamento. Poderíamos, então, ver na presciência de Deus sobre nós uma expressão de seu amor e solicitude? E Deus ama a todas as pessoas no mundo. Ele realmente possui presciência cognitiva de todos os pensamentos e ações de todas as pessoas. Quando, porém, a Bíblia se refere àqueles que creem no seu Filho, a presciência é aplicada a eles e a eles somente. Um Pai amoroso apresenta uma Noiva ao seu Filho amado.
Aqueles que Deus conheceu de antemão (Rm 8.29;
1 Pe 1.1), Ele os elegeu em Cristo80 (Ef 1.4) e os predestinou
"para serem conformes à imagem de seu Filho" (Rm 8.29) e "para
louvor da sua glória" (Ef 1.11,12). Em consonância ao seu propósito
soberano e amoroso assim expresso: "... não querendo que alguns se
percam, senão que todos venham a arrepender-se" (2 Pe 3.9), Ele chama as
pessoas a si mesmo (Is
55.1-8; Mt 11.28). No Antigo Testamento, o chamamento divino tinha a ver em
primeiro lugar com o povo de Israel, a partir de Abraão, seu ancestral.
No Novo Testamento,
o chamamento veio a ser mais universal e individualista, primariamente com o
propósito salvífico, embora seja diferente a ênfase. Às vezes o chamamento
refere-se à
(1) conclamação para seguir a Jesus (Mt
4.21; Mc 2.14, 17; cf. Lc 18.22);
(2) a uma chamada divina, ativa e interior,
quando se refere aos crentes (Rm 8.30; Ef 4.1; 2 Tm 1.9);
(3) a uma descrição daqueles que
correspondem (ou seja, "os que são chamados" [1 Co 1.24]); ou
(4) ao propósito para o qual Deus os chamou
(por exemplo, para serem "santos" [Rm 1.7; 1 Co 1.2]).
Ao concluir a parábola das bodas (Mt
22.1-14), Jesus disse que "muitos são chamados [gr. klêtoi],
mas poucos,, escolhidos [gr. eklektoi]"
(v. 13), num contexto que certamente tem em vista
o destino eterno (v. 13). "Demonstra que, pelo menos do ponto de vista da
resposta humana, o círculo dos chamados e o dos eleitos não coincidem necessariamente
entre si".81 A própria palavra "chamada" subentende
uma resposta, e, se correspondermos a ela, tornamo-nos eleitos de Deus. Se o
propósito eterno de Deus estiver em perspectiva (cf. Ef 1.4), estaremos entre
os eleitos.
Quando Deus nos chama para si, visando a
salvação, é sempre uma chamada da graça, independente de qualquer distinção que
façamos entre a graça "preveniente" e a graça "eficaz".
Poderemos resistir a essa chamada graciosa?
O calvinismo ensina que não, pois a
operação de Deus sempre alcança os seus propósitos. Sua graça é eficaz. Assim
como Deus chamou irresistivelmente
a criação à existência, também Ele chama irresistivelmente as pessoas à redenção. Se
aceitarmos a ordo salutis, proposta
pelos calvinistas,
na qual a regeneração segue o chamamento, mas antecede o arrependimento e a
fé, certamente a graça é irresistível. A pessoa já nasceu de novo. A ideia de
resistir, em semelhante caso, já não faz sentido.
Poder-se-ia afirmar, então, que a expressão
"graça irresistível" é tecnicamente imprópria? Parece ser um oximoro, como "bondade
cruel", porque a própria natureza da graça subentende que um dom gratuito
é oferecido, e tal presente pode ser aceito ou rejeitado. E assim acontece,
mesmo sendo o presente oferecido por um Soberano gracioso, amoroso e pessoal. E
sua soberania não será ameaçada ou diminuída se recusarmos o dom gratuito. Este
fato é evidente no Antigo Testamento.
O Senhor diz: "Estendi as mãos todo o
dia a um povo rebelde" (Is 65.2). E: "chamei, e não respondestes; falei, e não ouvistes" (Is
65.12). Os profetas deixam claro que quando o povo não acolhia bem as
expressões da graça de Deus, nem por isso ficava ameaçada a sua soberania.
Estêvão fustiga os seus ouvintes: "Homens de dura cerviz e incircuncisos de
coração e ouvido, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim, vós sois como
vossos pais" (At 7.51). Parece claro que Estêvão tinha em vista a
resistência à obra do Espírito Santo, que queria levá-los a Deus. O fato de
alguns deles (inclusive Saulo de Tarso) terem crido posteriormente não serve
como evidência em favor da doutrina da graça irresistível.
Além disso, necessário é dizer que, fosse
impossível resistir à graça de Deus, os incrédulos pereceriam, não por não
quererem corresponder, mas por não poderem. A graça de Deus não seria eficaz
para eles. Neste caso, Deus pareceria mais um soberano caprichoso que brinca
com os seus súditos que um Deus de amor e graça. Sua promessa: "todo
aquele , que quer" seria uma brincadeira de inigualável crueldade, pois
Ele é quem estaria brincando. Mas o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo não
brinca conosco. Quando os braços de nosso Senhor Jesus Cristo se estenderam na
cruz, Ele abrangeu a todos, pois Deus ama o mundo.
Deus é
amor, e a própria natureza do amor subentende que
ele pode ser resistido ou rejeitado. Pela sua própria natureza, o amor é vulnerável.
Não lhe diminuímos a magnífica grandeza ou a soberania se cremos possível
recusar seu amor e graça, que buscam atrair todas as pessoas a si mesmos.
A situação é a inversa. Deus, cujo amor anseia
que todos cheguem a Ele mas não os obriga irresistivelmente a vir e cujo coração fica
magoado com a recusa, forçosamente é de uma grandeza que ultrapassa a nossa
imaginação.
Há somente uma resposta apropriada a
tamanho amor: arrepender-nos e crer. Claro está que não podemos produzir tais
ações sem a capacitação divina. Por outro lado, não são produzidas em nós sem o
nosso consentimento. Evitemos as expressões extremadas do sinergismo (a "operação em conjunto")
edomonergismo (a"operaçãoisolada").
Omonergismo tem suas raízes no
agostinianismo, e afirma que a pessoa, para ser salva, não é capaz de fazer
absolutamente nada para levar a efeito a sua salvação. A conversão é uma obra
que somente Deus leva a efeito. Se o pecador optar por arrepender-se e crer,
Deus é o único agente ativo. Se o pecador optar por não se arrepender ou não
crer, a culpa é inteiramente deste.
Formas extremadas de sinergismo remontam a Pelágio, que
negava a depravação
essencial da humanidade. Na sua expressão evangélica moderada, entretanto,
remonta a Armínio
e, de modo mais expressivo, a Wesley, sendo que estes dois teólogos enfatizavam nossa
capacidade de escolher livremente, mesmo nas questões que afetam o nosso
destino eterno. Somos depravados; no entanto, nem mesmo os mais depravados
entre nós perderam totalmente a imagem de Deus.
O sinergista evangélico afirma que somente
Deus salva, mas acredita que as exortações universais ao arrependimento e à fé
fazem sentido apenas se pudermos, na realidade, aceitar ou rejeitar a salvação.
A salvação provém inteiramente da graça de Deus, mas declarar este fato não
exige que diminuamos a nossa responsabilidade quando confrontados pelo
Evangelho.
Fonte: Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal - Editora: CPAD
Editor Geral: Stanley M. Horton